...então, como eu estava a dizer antes de ser interrompido, eis que acordo para um novo dia a sentir-me doente e terrivelmente indisposto. Enjoos, nauseas, dores de cabeça, tonturas, sensações muito comuns para quem está prestes a entrar no Inferno ou a experimentar situações que comprovam a sua existência.
E tal foi de facto o que me aconteceu, caro Malefico, se não atente no relato que se segue.
Devido a essa indisposição que me tomava e me retirava a força anímica, optei nessa manhã por não proceder a determinados rituais matutinos, tais como o corte dos pelos faciais.
Foi assim nesse estado de abandalhamento, que me arrastei para o meu local de trabalho terreno, onde tenho por missão causar o maximo de perturbações, e assim levar todos a sentirem-se mizeraveis, dizerem mal das suas vidas e se possivel encomendarem a alma ao Diabo.
Estava eu portanto na longa espera da passagem das horas, dos minutos, dos segundos, quando recebo a informação de que uma entidade superior (vulgo, o chefe) me iria visitar para proceder a uma auditoria, juntamente com agentes externos chegados propositademente de países longinquos para tal facto.
Segundo a missiva que me chegou via electronica, tal concílio iria ter lugar no inicio da tarde.
Foi então que me veio à mente que o meu estado de apresentação não seria o mais adequado para tal evento e personagens!
Tomei então uma decisão temerária: iria ao covil a que chamo casa durante a hora de almoço e procederia aos rituais adiados desde a manhã. Apenas dessa forma, pensei eu, poderei estar à altura do que se espera de um verdadeiro Corporate Demon!
Mas alto!!!!
Eis que mais uma dificuldade me é colocada no caminho! Não havia duvida. Eu estava a ser testado pelo proprio Sr. Satanás!
Não é que eu nessa manhã tinha colocado a minha viatura metalica, auto-locomovida em local apropriado para que fosse executada uma lavagem profunda, meticulosa e bastante necessaria, sendo que portanto não a tinha disponivel para percorrer os longos quilometros que me separavam do meu objectivo: a masmorra caseira!
Ah, difíceis são os caminhos que o nosso Mestre nos faz percorrer para aferir do nosso valor, caro Malefico!
Eis que tomo então a seguinte decisão para levar a cabo tal empreitada: iria utilizar uma das viaturas, propriedade da entidade para quem laboro diariamente, para calcurrear o caminho que se me apresentava pela frente.
O plano era terrivelmente simples, utilizaria a hora de almoço para ir a casa, barbear-me, uma banhoca, trocar de roupa e apresentar-me a tempo e horas, com uma disposição e apresentação mais diabolica e malefica que nunca e portanto cheio de confiança para enfrentar as questões da referida auditoria interna.
Por me parecer demasiado simples, decido que o poderia complicar um pouco mais e assim agradar um pouco mais Áquele que sabemos: decidi levar a carroça mais velha e putrefacta (e unica disponivel, na verdade) que me apareceu à frente!
Mal coloquei o motor da viatura eleita em acção, tive a certeza que ela propria era um dos nossos. Tal era o ronco engasgado, entupido e a ameaçar falhar a qualquer instante, o cheiro a mofo quase pestilento, tudo sinais que tão bem conhecemos. Esta carrinha tinha por missão servir o Mal! O destino tinha-nos unido para juntos levarmos a cabo a temeraria viagem.
Arranco... a coisa desloca-se numa lentidão vertigionosa, o suor escorre-me pelas faces lividas de terror perante tal abominação dos infernos.
É neste ponto, caro Malefico, que o vou poupar aos detalhes de tão atribulada viagem, comparavel à descida aos Infernos de Dante. Recordo-me de todas (mesmo todas) as outras viaturas que se deslocavam passando por mim, de observar as ervas e outra vegetação rasteira a crescer vagarosamente nas bermas da estrada, do arrastar lento e melancolico dos ponteiros do relogio, do evento ocasional (mas sempre assinalavel) que é a passagem de um marco dos kms na auto-estrada (tive a oportunidade de os observar um a um com meticulosa atenção, aconselho-o vivamente a fazer o mesmo)...
Mas voltando ao fio da narrativa e precipitando-me para o apoteotico final.
Alterei então toda a minha imagem externa, para me tornar digno de partilhar o espaço com tais signatarios auditorantes das altas esferas corporativas e encetei nova viagem de regresso ao antro empresarial. Peito feito, cheio de vil esperança e com auto-confiança redobrada e reforçada de instintos maqueavelicos, pronto para disparar perolas de sabedoria e conhecimento à minima questão que me fosse formulada. Ou não fosse eu um dos grandes mentores ao serviço do grande Belzebu!
Eis que senão quando, estou eu a conduzir o demoniaco artefacto movel que me transportava, (decrepita era sua imagem e portanto decrepita era a minha) através dos altivos portões que abeiram a entrada das profundezas onde trabalho, e me deparo com a seguinte edionda visão, apenas passivel de ser congeminada pela mente da Besta superior, ela propria:
O meu superior hierarquico, acompanhado pela hoste de vis auditores, abandonavam nesse preciso momento o local para o qual eu me dirigia ao seu encontro.
Espanto....foi o que vi transbordar do olhar do dito ser. Nem uma palavra lhe saíu da garganta perante a demoniaca visão que eu lhe proporcionei no comando da tal besta rolante.
Apenas me recordo de balbucinar umas palavras sobre o meu carro estar na oficina (mentira) e de perguntar se então já se íam embora, ao qual ele respondeu afirmativamente e atirou não sem algum desprezo pela minha pessoa que mais tarde falariamos. Isto enquanto esboçavamos pseudo-sorrisos como que parecendo que estavamos perante uma situação perfeitamente normal...
E é assim, que enquanto escrevo estas linhas, aguardo o malfadado momento em que tentarei explicar que não, eu não estava a usar um carro da empresa para uso pessoal e não, eu não me decidi ausentar da empresa por outros motivos negros e escusos, que não fossem os de melhorar a minha aparencia pessoal.
Isto de ser demonio tem o seu lado misterioso... a missão é longa e os seus designios escuros.
os minutos passam...