segunda-feira, 7 de abril de 2008

O corcel não-alado, parte II - queda atrás de queda

Desejo pegar na narrativa no mesmo ponto em que a abandonei no post anterior, mas dada a natureza virtual deste meio de comunicação, que encetamos há já algumas décadas, tal prova-se impossível. Poderia tentar imprimir o texto e depois eleva-lo segurando no papel de suporte, com as pontas das garras precisamente no último ponto final que utilizei para por um terminus à primeira parte da épica historia. Mas tal provar-se-ia inútil e desnecessário, pois iria ter que dedilhar no teclado com apenas uma das mãos (a outra estaria a pegar na narrativa anterior precisamente no ponto em que a tinha abandonado).
Decidi portanto prosseguir a partir do ponto seguinte e sem lhe pegar.

Voltemos portanto atrás para apanhar o fio à meada, como dizem os antigos. Nunca percebi bem esta expressão, mas como eles são antigos, também é natural que já não se perceba bem o que eles estão a dizer. Se calhar estão a dizer qualquer coisa como “apanhar frio à geada”, ou qualquer coisa assim do género.

Bem! Estava eu perante a imóvel máquina infernal, e sem saber como agir para a fazer chegar ao local onde poderia receber a devida assistência. Querendo evitar as expensas do serviço de um reboque profissional, devidamente equipado e habilitado para o efeito (já vai entender o porquê deste aparte), tenho o magistral golpe de génio de recorrer aos favores da moderna e não muito disponível frota de transportes da empresa onde exerço funções profissionais de fachada. Rapidamente me foi dito que não me preocupasse! A ajuda ia a caminho!
Após alguma confusão na explicação do local onde me encontrava, deixei-me ficar calmamente à espera, estupidamente sentado no corcel não-alado, como que pronto a arrancar a qualquer momento, aos olhos de quem passava. Como estava calor e ao fim de um tempo de espera já considerável, resolvi retirar novamente toda a equipagem de protecção que me cobria. Isto porque o suor já me escorria pelo corpo todo e achei que já não seria necessário continuar a emitir uns sonoros VRUMMMM, sempre que alguém passava e parava a olhar para mim. E de facto resultou, na medida em que se mostrou mais discreto, sentar-me no passeio de costas voltadas para a, inapta para o movimento, maquina infernal.

Mas estes eram apenas os momentos de calma antes da tempestade, caro colega. Imagine se puder, o meu terror, o pânico que assomou no meu espírito, já de si maligno, quando vejo em lenta aproximação, vinda do fundo dos infernos em meu suposto auxílio, sabe quem? Sim, essa mesma carrinha! A que me acompanhou numa outra aventura que tive a oportunidade de relatar aqui mesmo.
“Oh Diabo!!”, exclamei em voz alta quando se fez noite na minha mente e me apercebi que estava a ser vitima de um convénio de maquinas maléficas!
Ainda a refazer-me do impacto da confrontação com a verdadeira e desesperante natureza da minha situação, entro em dialogo com o motorista que a vil viatura tinha trazido consigo, e após não muito tempo constatamos que teríamos que colocar o corcel dentro da carrinha (obvio até aqui), mas à mão, ie, em peso… Não havia forma de a fazer subir de outra maneira.
Após o que me pareceu uma das coisas mais estúpidas que alguma vez fiz, e sabe-se lá apelando a que forças dos confins da terra, lá nos deparamos com a imagem mais reconfortante de um bólide no interior do outro.
Mas como explicar a sensação de que ambas as maquinas me olhavam com sorrisos irónicos e sarcásticos? A resposta veio lesta e fulminante, com a afirmação do motorista: “mas agora alguém tem que ir aqui dentro, se não a mota cai na 1ª curva”. Sendo ele o motorista e após um rapidíssimo raciocínio de eliminação por defeito, sobrou apenas um nome: o meu.
Consternado e conformado com a minha sorte, subo para o interior do espaço de carga onde já se encontrava à minha espera a minha suposta fiel comparsa, agora não com um sorriso mas dando gargalhadas infernais.

Permita-me um pequeno parêntese, para recordar que, tratando-se de um carro de carga vulgo “de caixa fechada”, a dita viatura de transporte não possuía nem janelas nem qualquer tipo de aberturas que permitissem a entrada de luz ou mesmo ar para o seu interior. Uma fracção de segundo antes do bater esmagador da porta ao fechar-se, constatei ainda que a referida porta não possuía qualquer forma de abertura a partir do seu interior.

Encontrava-me neste momento, naquele que eu julgava ser o pico do pânico de toda esta situação! Fechado, nas entranhas da carrinha infernal, sozinho com o maligno corcel não-alado e sem hipótese nem de fuga nem de defesa…
Mas como se apraz dizer, não há nada que esteja mal que não possa ficar pior! E de facto, tal aconteceu (como seria de esperar).
Mal iniciamos o movimento (lento, muito lento) tornaram-se evidentes quais os diversos perigos que teria que enfrentar: qual rodeio dos infernos a vil montada, parecendo ganhar nova vida própria tentava sistematicamente enviar-me ao solo, tendo eu que apelar a todas as fibras do meu fortíssimo corpo e de todas as minhas capacidades (até agora desconhecidas) de equilíbrio. Tudo isto à medida que o forte odor a gasolina (recordo que tinha acabado de abastecer) se me entranhava no cérebro, causando um enjoo crescente que tomava conta do meu ser numa espiral de desespero.
Quando Dante tomar conta desta ocorrência certamente irá re-escrever a sua obra onde relata a sua descida aos Infernos, pois não foi menos que isso, caro amigo, aquilo o que eu vivi nesses intermináveis minutos que decorreram até à chegada ao nosso endereço final.

Uma vez chegados, e sentindo o abrir da porta, visualizando uma nesga de luz (admito que desta vez foi um alivio) precipitei-me para o exterior, tentando manter uma postura digna de qualquer alto signatário dos Infernos, como nós próprios, mas não o suficiente para evitar a questão “está tudo bem? Está-se a sentir bem?”.
Obviamente que não dei parte de fraco e apesar da coloração verde da minha derme, emiti um sonoro “AH! Seria preciso muito mais do que duas simples maquinetas para me derrubarem, a mim Mafarrico!”. Só após observar a cara espantada do receptor da minha mensagem, me recordei que a minha entidade demoníaca não era dele conhecida, pelo que disfarcei e comecei a falar do tempo.

O restante, Maléfico, são apenas factos de somenos importância. A constatação de que o problema era apenas da bateria e que poderia facilmente ter resolvido a questão no local sem quase ou nenhum aparato, foi-me dada como se de apenas um pormenor se tratasse, e eu tivesse estado a aproveitar para fazer um passeio matinal à custa do tempo da empresa onde deveria estar há algumas horas e para onde me dirigi de imediato, ainda lívido e em profunda reflexão sobre os eventos passados e qual o seu significado.

Passados que estão alguns dias sobre os eventos relatados, devo informa-lo que estou perfeitamente recuperado e só ainda não voltei a cruzar as estradas com o corcel não-alado, por manifesta indisponibilidade da parte dele.
De qualquer forma aqui fica o meu bem-haja pela preocupação que não chegou a demonstrar mas que sei que sentiu, tal a ansiedade em conhecer o desfecho de mais este relato verídico do trabalho do Demo.

Mafarrico

12 comentários:

Maléfico Patético disse...

mafarrico,

a epopeia que descreve é de bradar aos infernos.

Mas que bem se saiu, que sagacidade, perseverança e força de vontade demonstrou. A sua auto-estima estará sem dúvida num ponto altíssimo.

Penso mesmo que na sequência do nosso trabalho de dominação universal devemos aceitar um dos muitos pedidos de compra dos direitos desta historia pelos grandes estúdios hollywoodescos.

A melhor proposta que me chegou às mãos propunha,uma quantidade astronómica de dinheiro para um filme que se chamaria "Dominando os corceis infernais" e que contaria com :

Tom Cruise como mafarrico.
John Goodman como motorista em auxilio.
Paul Giamati como empregado da gasolineira.
Nicolau Breyner como automobilista irado a buzinar na bomba.
Nicole Kidman como gaja boa (escrever-se-ia algo para este papel).

tudo isto realizado por Manoel de Oliveira (nota : a aceitar tem de ser rápido!)

O que acha mafarrico, é de dizer sim?

\m/afarrico disse...

Uma quantidade astronómica de dinheiro parece-me bem. Tenho por hábito aceitar esse tipo de ofertas.

Agora, o Tom Cruise a fazer de Mafarrico? Não pode ser o Shreck?

Diabolicus disse...

É subtil como a má sorte acompanha os servidores do mal. Um verdadeiro trabalho do Demo que não hesita em presentear aqueles de quem mais gosta com as piores experiências.

Fiquei deveras surpreendido com toda a epopeia, especialmente quando percebi que o meu caro Mafarrico só tinha içado uma mota para dentro do demoníaco veículo que faz parte da frota da empresa para a qual V. Exa. finge que trabalha.

Uma mota?!! Afinal o corcel não alado, tinha apenas duas rodas, e V. Exa. anda disfarçado com um capacete...podendo dessa forma revelar a sua verdadeira identidade por essas estradas e caminhos fora, uma vez que usa como disfarce o referido capacete...brilhante ideia, e grandes diabruras se prevêem. (Não estou certo que a palavra "diabruras" seja suficientemente demoníaca mas enfim, está dito, não ia perder tempo agora a apagar).

Os dois relatos são infernalmente agradáveis de ler, toda a história é um prefácio de aventuras por contar, e estou certo que o seu novo aliado móvel ainda irá dar que falar, tão depressa se mostrou incapaz de obedecer a ordens simples como "start".

Diabolicus disse...

O filme parece-me excelente ideia.

Ideal o Nicolau Breyner a buzinar e a insultar tudo e todos.

Caro Maléfico, se descobrem o seu talento ainda o vêem buscar a si para fazer a coordenação e direcção de actores.

O Tom Cruise parece-me bem como Mafarrico. O rapaz já fez de drácula, e seria engraçado ver os seus dentitos afiados a aparecer quando se visse fechado no interior da carrinha acompanhado do corcel.

Brigite Silva disse...

O Shreck parece-me adequado...

...ao verde da sua derme quando as portas da sua velha amiga carrinha se abriram, isto é...

:))))

Maléfico Patético disse...

mafarrico,

parece-me que shreck não seria boa ideia, tão somente porque o anjinho papudo achou boa ideia. Ora não podemos achar os dois boa ideia à mesma coisa.

A não ser que ele já soubesse que eu ia dizer isto e então acha má ideia e disse que era boa ideia só para eu também achar má ideia e assim escolher outra ideia que não fosse tão boa ... ou má.

Estes anjos irritam-me, não haverá maneira de os impedir de entrar na masmorra?

Aceito sugestões de todos os parceiros infernais, para acabar com esta praga ....

Diabolicus disse...

Deveras é o que posso dizer...deveras surpreendido por verificar que sobrevivem anjinhos papudos nesta Masmorra Infernal.

Nunca pensei que o ar profundamente pestilento e corrosivo, misturado com um quente ao mesmo tempo potrefacto e azedo bafo dos ogres que aqui habitam permiti-se que anjinhos supostamente brancos, mas já papudos conseguissem por aqui pairar sem tombar à 1ª inalação daquilo que poderiam pensar ser oxigénio.

Trata-se não de oxigénio, mas do mais puro sulfato de enxofre em estado ultrapassado.

Sugiro a essas criaturas mais indefesas que não mais tornem a pisar ou sobrevoar territórios que lhes deveriam estar vedados!!!

Aqui fica a minha diabólica opinião!
Certo de que a acatarais caso as asas quiserdes manter..

\m/afarrico disse...

Caros parceiros do Mal!

Atentai ao que vos digo! Não haverá motivos para preocupações quanto à estanquicidade da nossa nojenta Masmorra no que concerne aos entes celestiais.
Se não vejamos, a questão que se apresenta à resposta que colocais está ela propria, não sobre a forma de pergunta (ou dúvida) mas sim como uma dúvida respondida por natureza!
Como assim, perguntais vós?
Porque se um anjo não deveria sobreviver na Masmorra e se este que se intitula anjo papudo sobrevive, é porque não é um anjo. Pronto! Facil!
Nestes casos devemos sempre procurar a resposta mais facil e a que nos dê menos trabalho em termos de acção! Mesmo correndo o risco de sermos injustamente acusados de estarmos a querer negar a realidade e a fugir às responsabilidades. Nós nunca fariamos isso...

Diabolicus disse...

De facto tendes razão, estou agora muito mais tranquilo.

Do que as criaturas do Demo são capazes de se lembrar...fantasiarem-se de anijinhos papudos...é cada uma.

Maléfico Patético disse...

mafarrico,

não estou totalmente sossegado.

E se o anjo em questão se munir de um qualquer aparelho de respiração artificial, que no seu interior tenha ar puro das savanas celestiais? Não poderia ele sobreviver no nosso antro até ser descoberto e massacrado pelos nossos?

E se eles nunca se tivessem lembrado disso, não se irão lembrar agora e começar a aparecer? Claro que sim! Se calhar fiz asneira em divulgar este meu pensamento.

\m/afarrico disse...

Claro que não! Estivestes bem colega Maléfico! Que melhor forma para passar o tempo na nossa Masmorra, do que o desporto de massacrar, como tão bem apontasteis, anjos infiltrados.
Finjamo-nos distraídos e deixai-os pousar, digo eu...desta feita, em vez do tridente uso a moca com pregos...que achais colegas?

Diabolicus disse...

Uma moca com pregos é genial, e adapta-se melhor a criaturas de pequeno porte, como pequenos anjos papudos, os quais imagino semelhantes a tordos.

Não consigo imaginar aparelhos tecnologicamente avançados na Masmorra, por isso refuto a ideia dos ditos "aparelhos de respiração artificial" andarem por aí à solta.

Provavelmente o anjo entrou num momento em que as portas da masmorra se entreabriram qd algum maléfico saiu em busca de humanos para sacrificar.

O anjo a esta hora já deve ter consciência dos destinos errantes do seu vôo, qual mosca presa a um vidro, zumbindo nervosamente em busca da liberdade...e o destino das moscas tb não costuma ser muito feliz...vocês sabem do que eu estou a falar...AHAHAHAHAH