Desejo pegar na narrativa no mesmo ponto em que a abandonei no post anterior, mas dada a natureza virtual deste meio de comunicação, que encetamos há já algumas décadas, tal prova-se impossível. Poderia tentar imprimir o texto e depois eleva-lo segurando no papel de suporte, com as pontas das garras precisamente no último ponto final que utilizei para por um terminus à primeira parte da épica historia. Mas tal provar-se-ia inútil e desnecessário, pois iria ter que dedilhar no teclado com apenas uma das mãos (a outra estaria a pegar na narrativa anterior precisamente no ponto em que a tinha abandonado).
Decidi portanto prosseguir a partir do ponto seguinte e sem lhe pegar.
Voltemos portanto atrás para apanhar o fio à meada, como dizem os antigos. Nunca percebi bem esta expressão, mas como eles são antigos, também é natural que já não se perceba bem o que eles estão a dizer. Se calhar estão a dizer qualquer coisa como “apanhar frio à geada”, ou qualquer coisa assim do género.
Bem! Estava eu perante a imóvel máquina infernal, e sem saber como agir para a fazer chegar ao local onde poderia receber a devida assistência. Querendo evitar as expensas do serviço de um reboque profissional, devidamente equipado e habilitado para o efeito (já vai entender o porquê deste aparte), tenho o magistral golpe de génio de recorrer aos favores da moderna e não muito disponível frota de transportes da empresa onde exerço funções profissionais de fachada. Rapidamente me foi dito que não me preocupasse! A ajuda ia a caminho!
Após alguma confusão na explicação do local onde me encontrava, deixei-me ficar calmamente à espera, estupidamente sentado no corcel não-alado, como que pronto a arrancar a qualquer momento, aos olhos de quem passava. Como estava calor e ao fim de um tempo de espera já considerável, resolvi retirar novamente toda a equipagem de protecção que me cobria. Isto porque o suor já me escorria pelo corpo todo e achei que já não seria necessário continuar a emitir uns sonoros VRUMMMM, sempre que alguém passava e parava a olhar para mim. E de facto resultou, na medida em que se mostrou mais discreto, sentar-me no passeio de costas voltadas para a, inapta para o movimento, maquina infernal.
Mas estes eram apenas os momentos de calma antes da tempestade, caro colega. Imagine se puder, o meu terror, o pânico que assomou no meu espírito, já de si maligno, quando vejo em lenta aproximação, vinda do fundo dos infernos em meu suposto auxílio, sabe quem? Sim, essa mesma carrinha! A que me acompanhou numa outra aventura que tive a oportunidade de relatar aqui mesmo.
“Oh Diabo!!”, exclamei em voz alta quando se fez noite na minha mente e me apercebi que estava a ser vitima de um convénio de maquinas maléficas!
Ainda a refazer-me do impacto da confrontação com a verdadeira e desesperante natureza da minha situação, entro em dialogo com o motorista que a vil viatura tinha trazido consigo, e após não muito tempo constatamos que teríamos que colocar o corcel dentro da carrinha (obvio até aqui), mas à mão, ie, em peso… Não havia forma de a fazer subir de outra maneira.
Após o que me pareceu uma das coisas mais estúpidas que alguma vez fiz, e sabe-se lá apelando a que forças dos confins da terra, lá nos deparamos com a imagem mais reconfortante de um bólide no interior do outro.
Mas como explicar a sensação de que ambas as maquinas me olhavam com sorrisos irónicos e sarcásticos? A resposta veio lesta e fulminante, com a afirmação do motorista: “mas agora alguém tem que ir aqui dentro, se não a mota cai na 1ª curva”. Sendo ele o motorista e após um rapidíssimo raciocínio de eliminação por defeito, sobrou apenas um nome: o meu.
Consternado e conformado com a minha sorte, subo para o interior do espaço de carga onde já se encontrava à minha espera a minha suposta fiel comparsa, agora não com um sorriso mas dando gargalhadas infernais.
Permita-me um pequeno parêntese, para recordar que, tratando-se de um carro de carga vulgo “de caixa fechada”, a dita viatura de transporte não possuía nem janelas nem qualquer tipo de aberturas que permitissem a entrada de luz ou mesmo ar para o seu interior. Uma fracção de segundo antes do bater esmagador da porta ao fechar-se, constatei ainda que a referida porta não possuía qualquer forma de abertura a partir do seu interior.
Encontrava-me neste momento, naquele que eu julgava ser o pico do pânico de toda esta situação! Fechado, nas entranhas da carrinha infernal, sozinho com o maligno corcel não-alado e sem hipótese nem de fuga nem de defesa…
Mas como se apraz dizer, não há nada que esteja mal que não possa ficar pior! E de facto, tal aconteceu (como seria de esperar).
Mal iniciamos o movimento (lento, muito lento) tornaram-se evidentes quais os diversos perigos que teria que enfrentar: qual rodeio dos infernos a vil montada, parecendo ganhar nova vida própria tentava sistematicamente enviar-me ao solo, tendo eu que apelar a todas as fibras do meu fortíssimo corpo e de todas as minhas capacidades (até agora desconhecidas) de equilíbrio. Tudo isto à medida que o forte odor a gasolina (recordo que tinha acabado de abastecer) se me entranhava no cérebro, causando um enjoo crescente que tomava conta do meu ser numa espiral de desespero.
Quando Dante tomar conta desta ocorrência certamente irá re-escrever a sua obra onde relata a sua descida aos Infernos, pois não foi menos que isso, caro amigo, aquilo o que eu vivi nesses intermináveis minutos que decorreram até à chegada ao nosso endereço final.
Uma vez chegados, e sentindo o abrir da porta, visualizando uma nesga de luz (admito que desta vez foi um alivio) precipitei-me para o exterior, tentando manter uma postura digna de qualquer alto signatário dos Infernos, como nós próprios, mas não o suficiente para evitar a questão “está tudo bem? Está-se a sentir bem?”.
Obviamente que não dei parte de fraco e apesar da coloração verde da minha derme, emiti um sonoro “AH! Seria preciso muito mais do que duas simples maquinetas para me derrubarem, a mim Mafarrico!”. Só após observar a cara espantada do receptor da minha mensagem, me recordei que a minha entidade demoníaca não era dele conhecida, pelo que disfarcei e comecei a falar do tempo.
O restante, Maléfico, são apenas factos de somenos importância. A constatação de que o problema era apenas da bateria e que poderia facilmente ter resolvido a questão no local sem quase ou nenhum aparato, foi-me dada como se de apenas um pormenor se tratasse, e eu tivesse estado a aproveitar para fazer um passeio matinal à custa do tempo da empresa onde deveria estar há algumas horas e para onde me dirigi de imediato, ainda lívido e em profunda reflexão sobre os eventos passados e qual o seu significado.
Passados que estão alguns dias sobre os eventos relatados, devo informa-lo que estou perfeitamente recuperado e só ainda não voltei a cruzar as estradas com o corcel não-alado, por manifesta indisponibilidade da parte dele.
De qualquer forma aqui fica o meu bem-haja pela preocupação que não chegou a demonstrar mas que sei que sentiu, tal a ansiedade em conhecer o desfecho de mais este relato verídico do trabalho do Demo.
Mafarrico