quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Efeméride

O texto que se segue não foi escrito por Maléfico nem por Mafarrico, mas podia ter sido pois ao longo das suas palavras e frases sente-se o estilo e pujança desta dupla. Apraz-me, portanto, verificar que vamos somando seguidores que se lançam no mundo da literatura almejando tornar-se génios do nosso calibre. Ouçamos portanto, com atenção, o relato que se segue:

"É com excessiva repugnância que vou relatar a pavorosa cena que se desenrolou e que nenhum acontecimento posterior pôde apagar-me da memória, onde ficou gravada com os mais minuciosos pormenores, e cuja cruel recordação amargará todos os futuros momentos da minha existência. [...] O único meio que estava à nossa disposição para a terrível lotaria, na qual cada um de nós tinha o risco a correr, era o da palha mais curta. Pequenas estilhas de madeira serviam para o fim proposto, e foi convencionado que seria eu a apresentá-las. Afastei-me para um canto no navio, enquanto os meus pobres companheiros ficavam no extremo oposto, de costas para mim. O momento mais cruel deste drama terrível, o mais angustiante, foi quando procurava arranjar as várias parcelas. [...] Pus-me a pensar em todos os ardis imagináveis para fazer batota no jogo, de modo a levar um dos meus pobres companheiros de infortúnio a tirar o pedaço mais pequeno, pois fora convencionado que o que tirasse a mais curta das quatro lascas, morreria para conservação dos outros. Antes que alguém me condene por esta aparente infâmia, deve colocar-se numa situação precisamente igual à minha!
Como já não era possível adiar por mais tempo, avancei, com o coração a saltar-me do peito, para o castelo da proa, onde os meus companheiros aguardavam. Apresentei a mão fechada com as lascas e Peters tirou uma delas imediatamente. Estava livre! O seu pedaço, pelo menos não era o mais curto. Havia agora mais uma probabilidade contra mim. Reuni todas as energias e estendi o pedaço a Augusto, que tirou rapidamente o seu e ficou igualmente livre. Nesta altura as probabilidades de viver ou morrer eram exactamente iguais e, então, apoderou-se do meu espirito toda a ferocidade do tigre, sentindo contra Parker, meu semelhante, meu pobre companheiro, o mais intenso, o mais diabólico ódio. Este sentimento durou pouco tempo, e, por fim, com um arrepio convulsivo e os olhos fechado, estendi-lhe as restantes duas lascas. Mais de cinco minutos passaram, antes de conseguir resolver-se a tirar a sua e, durante esse período de indecisão (que me pareceu um século), capaz de partir o coração ao mais sensível, não abri os olhos um instante que fosse. Finalmente, um dos pedaços foi-me vivamente arrancado da mão. A sorte estava jogada, mas não sabia se era a favor ou contra mim. Ninguém falava, e não ousava quebrar a minha incerteza olhando o pedaço que me restava, até que Peters me agarrou na mão, esforçando-me por olhar para ela. Não foi necessário, pois bastou-me olhar para o rosto de Parker para ver que estava salvo, e que era ele a vítima condenada. Respirei convulsivamente e caí desmaiado na coberta.
Voltei a mim a tempo de ver a consumação da tragédia e assistir à morte daquele que, como autor da proposta, havia sido o seu próprio carrasco. Parker não ofereceu a mínima resistência e caiu morto, atingido por uma punhalada nas costas dada por Peters. Não me vou deter a falar do terrível festim que imediatamente se seguiu: são coisas que poderemos imaginar, pois as palavras não têm poder suficiente para impressionar o espírito com o tremendo horror da realidade. Apenas direi que após termos aplacado a raivosa sede que nos destroçava com o sangue da vítima, e cortado, de comum acordo, as mãos, os pés e a cabeça, que atirámos ao mar com as entranhas, devorámos o resto do corpo, pedaço a pedaço, durante esses quatro dias para sempre memoráveis que se seguiram: 17,18,19 e 20 de Julho"
E.A. Poe - Aventuras de Arthur Gordon Pym
E.A.Poe escreve de acordo com a antiga ortografia

E.A. Poe tem muito jeito para a escrita, mas pouco para o suspense, pois uma vez que apresenta o narrador na primeira pessoa, e se nota rapidamente que a obra não tem um fim abrupto, então aquela cena do 50-50 de probabilidades não engana ninguém, por outro lado refere que atiraram as mãos, os pés e a cabeça ao mar, deglutindo o resto, ora toda a gente sabe que são precisamente estes os pedaços que mais nutrientes acumulam ( e eles bem precisavam) e que devem ser aproveitados para uma dieta saudável o que torna o texto bastante anti-pedagógico. Outros pontos existem merecedores de apontamentos negativos, que por certo o meu colega Mafarrico apontará no local habitual, ali em baixo.




1 comentário:

Diabolicus disse...

Excelente apontamento! Excelentes observações as suas Maléfico! Deparei-me exactamente com as mesma constatação de que o narrador estava salvo o que retirou emoção à história. Teria tido mais interesse que o narrador tivesse ficado com a lasca mais curta e escrito este texto póst-mortum, podendo relatar também as sensações da punhalada nas costas e do corte dos seus membros. De qualquer forma foi um excelente excerto, eheh, para o meu regresso ainda que fugaz à Masmorra!